terça-feira, 17 de abril de 2012


A hora mais feliz era a hora em que tocava o sino. Saíamos correndo direto para a cozinha, com roupa rasgada e cheia de lama, mas com as mãos limpas. Comíamos até dizer "chega, tô de rabo cheio", e de lá íamos para nosso reino. Nosso reino de terra, nosso reino com um cheiro de marrom. Nosso reino era nosso, e adulto nenhum podia interferir. Se eu quisesse que a pá fosse um trator, ela seria. Ninguém meteria a fuça na minha imaginação. Se eu quisesse que aquele morrinho fosse meu castelo, ele seria. Seria, seria, seria. É. Aquele graveto era uma cobra horrenda, da qual o príncipe viria me salvar. O sapo era o chão que pulava, a formiguinha era nossa amora, com duas bundinhas redondas e mega saborosas. Era tudo muito doce. Nossa brincadeira tinha gosto de açúcar, era uma delícia. Mas foi só completar algumas velas a mais no bolo que foi perdendo a graça. Foi ficando tosca, coisa de criancinha. "Não posso me sujar, sou uma mocinha". A ortografia foi ficando correta, e a imaginação foi entortando. Razão foi introduzida no mundo. Antes era fantasia. Fantasias verdadeiras. Razões são mentirosas, nossos sentidos nos enganam. Queria mesmo voltar a escutar a cor dos pássaros. Ver o cocoró das galinhas. Queria descrescer. Cada momento era único, cada momento fazia de mim uma coisa diferente. Digo coisa porque eu podia mesmo ser uma privada. Podia ser um guarda-roupa, uma poltrona, uma televisão. Eu era coisas. E todas eram eu, todas eram humanizadas. Eu era livre. O mais gostoso era brincar de inventar, de contar, de fantasiar. Teve até um dia que aquela montanha, aquela atrás da chácara do meu avô, virou um dragão feroz e queria porque queria comer nossos fígados, pois ele tinha perdido o dele em uma batalha com um camaleão gigante, que estava disfarçado de nuvem lá no céu, então ele resolveu comer um de nós pra ter um fígado de volta. Mas graças a Deus conseguimos matar ele, e não foi fácil. Foi o spray de pimenta da Jú que cegou o bicho, e só assim o Bru conseguiu enfiar a faca no coração dele, uma faca que tinha 60 km de comprimento. Ha-ha. Inesquecível esse dia. Num outro dia viramos índios. Em outros já fomos elfos, leões, serpentes, e até Adão e Eva. Mas agora não tem mais graça. Onde foi  será que eu perdi minha imaginação? Quando eu deixei de ouvir as cores e ver a música? Bem que poderia haver um "achados e perdidos" que tenha eu pequenininha lá dentro. Assim eu me pegava e seria um dinossauro, pra amassar todo esse planeta fedido de gente chata e grande demais...

Nenhum comentário:

Postar um comentário